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O ser se diz de muitos modos 1

Este é um série de cinco posts mais ou menos longos mas divididos em trechos curtos e mais ou menos autônomos. Há portanto vários pontos de respiro.
Leia como um bate-papo num bar a beira da praia. A conversa gira, vai e volta, negaceia: roda de capoeira, jam session. Mas sempre em torno de um ponto: os efeitos alienantes da epistemologia kantiana.

Eles dão sequência a reflexão começada em Groucho Marx e a epistemologia kantiana.

Os links da série: 1 2 3 4 5


Tao tem olhos de réptil e salta como um símio: ela vê e se move diferente de mim. E no entanto, concordamos quando brincamos de desafiar o espaço e o tempo, o que é próprio de todo jogo. Isso significaria que ela partilha comigo as mesmas formas da sensibilidade?

Nesse caso, não se enfraquece o cetismo implícito no kantismo?

Cético de quê, se partilhamos com destreza o mesmo espaço e tempo?

Repito: cético de quê? Da coisa em si? Mas o que se quer dizer com isso, “coisa em si?” ? Não será a coisa em si essa partilha, esse entendimento comum que temos eu e a gata, nós dois e as mariposas, e tudo mais ao redor?

Kantianamente isso significaria que rodamos o mesmo sistema operacional.

Mas, se é assim, por que reivindicar mais essa camada se posso pensar o processo todo como uma relação direta sem intermediários?

O idealismo seria então uma redundância?


Coisa em si, se entendido como essência, é isso que faz de Tao um gato. Um gato fêmea.

Mas e ela, Tao, singularíssima, como tudo mais? Ao ganhar um nome ela já não é mais simplesmente um gato fêmea, mas a Tao

Aparentemente essa singularidade só se realiza havendo um outro: nossa santíssima dualidade, que se completa como trindade por esse laço que se cria entre nós e nos une, eu e a gata, com nossos nomes, sons, gestos, jogos e silêncios.


A coisa, em si, para si, já o demonstrara Descartes, é uma duração vazia de conteúdo. Fora da sua relação com o Mundo, ela não é propriamente nada além de um ser que pensa. Um quase-nada, que é o mais longe que consigo ir, se adota a via da noluntade.

Noluntade: precisamos ressuscitar esse conceito…


Esse autoconhecimento intrínseco é próprio de todos os seres: a Tao sabe que é gato. E não quer ser outra coisa. A nossa marca diferencial é a linguagem – ou até mais exatamente, a escrita: eu posso dar conta como agora dos meus estados de autoconsciência. Ela não – ou não como eu. Por escrito. Sim, há os gritos, os mios, as mordidas.. Mas ainda que a escove diariamente a seu pedido, não lhe posso escrever uma carta.


Em Descartes, essa singularidade, uma vez estabelecida, isso que chamam muito imperfeitamente de Cogito, sai em busca de um par e por isso começa a indagar aquilo que ele pode deixar-se lembrar – ou imaginar? Essa questão não se coloca ainda no âmbito onde ele está: na presunção hiper-idealista de que não há mundo.

E por meio desse inventário, Descartes chega à ofuscante ideia de infinito, inenarrável, mas que permeia tudo, como potência de ser, como condição de possibilidade de toda coisa ser o que é.

É dos momentos mais belos da literatura, quando Descartes abre os olhos e faz dissolver um pedaço de cera na chama da vela e a cera transmuta-se em outra coisa inteiramente diversa do que ainda há pouco fora.

Mas – e aqui começa a virada realista – ele a reconhece como a mesma cera. E sobretudo ele percebe que a despeito das infinitesimais variações de forma que ela poderia ter tomado no processo ele ainda assim a reconheceria como a mesma cera.


Uma essência plástica, quase-inominável, um campo de possibilidades de ser, virtualmente dado, simultâneo a si mesmo, e por isso, difícil de reduzir à linguagem sucessiva.

Qualquer descrição dessa ideia de infinito será sempre imperfeita, um desafio à linguagem: há coisas que só se dizem por meio da matemática – e Oppie ocncordaria comigo.


Sera muito dificil perceber o quanto isso reduz o kantismo a um jogo inutil, em busca de uma coisa em si que só existe como relação? que não existe como coisa estática?


A quimera dos juízos sintéticos a priori é o ponto de partida de Kant.

É um silogismo tão banal que chega a parecer falso:

1) Se todo conhecimento deriva da experiência repetida – e toda experiencia é contingente, ressalte-se, só pra complicar – o conhecimento resulta da reflexão sobre esse acúmulo e será sempre tão imperfeito quanto o sujeito que a produz.

Seria um hiper aristotelismo, um realismo bem cru? Acho que resultaria nisso, como acabou resultando, Mas é também um princípio de economia e de prudência: todo conhecimento é parcial. Nem exatamente por deficiência do sujeito mas pela complexidade do objeto. O conhecimento seria portanto sintético e a posteriori.


Voltemos às premissas de Kant:

2) Mas a verdade tem de ser necessária, ela é universal isto é valida todo tempo em todos os cenários, Portanto a priori. Mas justamente por isso, ela é anterior a qualquer experiência (a priori) e imutável (não lhe posso acrescentar novas notas a partir da experiência (conhecimento sintético) mas apenas decompô-la por análise (conhecimento analítico). Logo o conhecimento da verdade é a priori e analítico. Não há possibilidade portanto de verdades novas.

3) Logo chegamos a um impasse: como seria possível um conhecimento ao mesmo tempo sintético e a priori? Ou dito de outro modo: como conciliar a tábula rasa de Rousseau com o empirismo de Hume – as duas leituras que mais impressionam Kant na fase pré-Crítica.

Porque, se da experiência do Mundo não é possível obter senão verdades parciais e a análise das verdades universais nada me revela de novo, está pronto o cenário para se concluir que se a verdade não vem do mundo, ela só pode ir ao mundo, invertendo o fluxo.

Eis a boa nova do kantismo com seus juízos sintéticos a priori: o kantismo pretende ser uma Revelação.


O kantismo é uma solução complicada para um problema inexistente.

Não estou nem um pouco familiarizado com o pensamento de Hume, suponho que o que choca Kant é o sensualismo de Hume.

Se perguntado sobre a possibilidade de juízos sintéticos a priori, Hume, acredito, responderá que não é possível. O conhecimento é sempre deduzido da nossa precária relação com o mundo. É portanto a posteriori e contingente. Sacrifica-se o ideal da universalidade no altar de um hiperrealismo.

No entanto, acredito que choca a Kant ter de abrir de suas “fixações” de suas certezas subjetivas A ideia daquele anãozinho emperiquitado passando todo dia à mesma hora na minha porta é um exemplo folclórico do espirito kantiano.

Ele precisa de algo que seja fixo, uma verdade pra chamar de sua: a derradeira epistemologia. Um lugar para a sua quimera.

Para acomodá-la, Kant irá cortar os nexos que unem a mente e o Mundo.

O kantismo é uma especie platonismo solipsista onde a minha mente é o mundos das ideias que, atravessada pela cora dos dados sensiveis, projeta simulacros fenomênicos.

Para dar conta da “razão”, Kant incorpora Aristóteles em seu castelo de cartes.

É tudo tão sem imaginação, tão sem arte, que é impressionante que perdure – a não ser como sintoma – já o perceberá Nietzsche em O Crepúsculo dos Ídolos.


Em Kant, aquilo que vejo é uma projeção que a minha mente faz do mundo. Reparem: ela pode até coincidir com as coisas do mundo, como o retrato coincide com a pessoa, mas já não há mais como ter certeza. E, até certo ponto, essa certeza se torna irrelevante, pois o vínculo ontológico já foi rompido..


É importante ressaltar que Kant é um homem casto.


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