Volto à entrevista de Miguel Nicolelis comentada em Groucho Marx e a epistemologia kantiana: há em sua fala uma contradição implícita, eu diria mesmo uma vontade de infelicidade: quanto mais conhecemos a realidade, mais nos convencemos de não podermos conhecê-la de fato.
Essa versão vulgar do kantismo é uma especie de teologia negativa.
E é isso que me preocupa. Que se perca a percepção da singularidade da relação que o espirito humano tem com o cosmos, com toda essa a vida ao redor que não se move pelo acaso, mas por uma vontade obstinada de seguir vivendo: a planta em seu namoro com o sol, Tao olhando a paisagem na janela e eu aqui escrevendo e ouvindo jazz…
isso é paz. Um conforto de estar no Mundo que só tenho se creio que a vida à minha volta me acolhe, me pertence, que dela participo.
Acho que é essa paz que se perde quando se adota uma perspectiva kantiana do mundo, tão bem expressa por Nicolelis.
Não é o que vejo e partilho com os seres à minha volta.
Há inteligencia na vida que observo: as coisas orientam-se não pelo acaso mas por uma vontade de viver, de durar, tão própria de tudo que é finito. E fazem isso com método, intenção, finalidade. Eu posso daí deduzir princípios, regras – sim, porque é próprio da minha inteligência essa capacidade de pensar o pensamento.
É a idolatria pelo Acaso o que me afasta das versões mais vulgares do darwinismo.
.A inteligência abomina o acaso, mas idolatra a surpresa, o inesperado. À inteligencia deslumbra não o choque mas com a acrobacia.
Há como que um principio essencial comum a todos os seres finitos: obter o máximo de rendimento com o minimo de esforço: quanto menor o esforço maior a duração. Uma espécie de principio ontológico de inércia.
A planta busca o sol para florir. Mas foi Emília quem dispôs as violetas mais próxima da janela para as ajudar a encontrar o caminho do sol. Esse diálogo com o Mundo é a prova cotidiana da falsidade idealista.
Há nisso um diálogo de inteligências em torno dessa explicita e belissima vontade de viver que é comum a todos os seres.
E não parece difícil admitir que a vontade de viver é primeira em relação à inteligência humana auto-consciente. Somos como um acréscimo, uma última camada que se desenvolve a partir do nosso diálogo com o mundo, como suponho pretende Hume.
Mas essa vontade primária de viver comum a todos também está em nós e é racional, no sentido que segue princípios e regras mínimos, simples, para cumprir sua finalidade. crescer e multiplicar, sobreviver e reproduzir.
É isso que Descartes irá acessar pela via introspectiva da meditação, concluindo por sua comunhão com o Mundo..
Há o noumênico, admite Kant. Só que, quando ele chega lá, já tem por certa sua inacessibilidade, garantida desde o começo pela Estética kantiana.
Kant fala-nos portanto daquilo que não se pode falar: mais do que filósofo, Kant é o sacerdote de uma nova religião. Estamos já no âmbito de uma teologia negativa.
Porque dizer “X é inacessível” é um paradoxo, uma frase sem sentido. Como posso predicar ser de algo que me é inacessível?
Mas o Ser se diz de muitos modos, afirma Aristóteles. Se o ser se diz alguém há que ouvi-lo. O Ser é portanto relacional e não pode ser pensado fora de uma relação com outro. A questão kantiana é um falso problema.
Tao segue na janela curtindo o vento, relaxadíssima.
A total falta de sensualidade de Kant me assusta E digo: ela pode ser apavorante. Em momentos de depressão o sujeito pode ter surtos de kantismo e isso é perigoso.
Kant é também antiecológico por natureza.
Repare: se só o que posso capturar e expressar do mundo são fenômenos, logo me sinto mais confiante entre entes artificiais produzidos por outro homem. Há uma desconfiança na natureza que salta aos olhos.
E se fosse dado ver para além das aparências, para além dos fenômenos – não haveria nada para ver, acredito.
Por outro lado,reparem também como está implícito uma falha no noumênico: essa falta de simplicidade não seria isso um sinal de imperfeição?
E onde um Deus falha há que haver outro. Ao menos um. Seu oponente. Instaura-se um dualismo gnóstico que clama por uma síntese.
Ah, as sínteses alemãs… Se cairmos nessa rede, é dificil escapar: malha fina.
É um loop alucinante, um estado mental interessante, mas não muito recomendável para amadores, amantes feridos e misantropos. Porque a cada síntese segue-se uma nova oposição tese x antítese e assim incessantemente. Não há paz no inferno dialético.
Não gosto desse climão dialético. Prefiro a ideia de que a mudança é trivial num mundo finito. Prefiro acreditar que as coisas por natureza estão dando sempre o seu melhor possível. Não é o melhor dos mundos possíveis de Leibniz. É simplesmente um princípio realista que induz à misericórdia e ao contentamento e que me parece uma boa regra de convivência.
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