A luz, o ar, a comida, os afetos – tudo isso nos vem de fora – do Mundo. A alienação sensorial do mundo, é o que me apavora em Kant. Horror Metafísico – que é um livro de Leszek Kołakowski que merecia uma tradução decente.
Como é impossível negar a própria natureza, os homens seguem vivendo segundo o senso comum. Confiamos nos sentidos, confiamos em nosso aparato cognitivo, em nossa relação privilegiada com o mundo ao redor.
Mas e esse mas deveria vir escrito em maiúsculas, há o idealismo a lançar uma sombra de desconfiança sobre o Mundo. Sobretudo esse idealismo vulgar tão bem expresso por Nicolelis, uma gororoba amarga que mistura Kant, Hegel e Husserl.
O objetivo desta longa série é chamar a atenção dos leitores para os efeitos dessa alienação sensorial do mundo sobre a nossa vida – pessoal e social. Estamos alienados de nosso corpo e do Mundo ao redor. A desconfiança – que também se expressa como idolatria – da Natureza, de todas as naturezas.
E quanto mais descobrimos e avançamos em nosso conhecimento das coisas, mais ênfase se dá ao adágio: “A coisa em si é inacessível”.
isso é uma doença.
Uma doença social e espiritual – com efeitos graves na nossa saúde, no meio ambiente e no modo como nos apropriamos do conhecimento.
Mesmo que intramuros a Filosofia apresente versões edulcoradas do idealismo kantiano e até faça que os fenômenos de alguma forma coincidam com as coisas, o laço que nos une ao Mundo num diálogo já está irremediavelmente perdido.
É o mal estar da civilização sancionado como uma coisa natural.
Assinalo a palavra natural porque dizer natureza é dizer essência – é dizer coisa em si. E como já vimos mais atrás, o Ser, os seres, só existem em relação a outro ser. A coisa em si como coisa estática é outra quimera kantiana.
E em Kant, nós, como coisa em si, estamos alienados do Mundo pela barreira dos fenômenos.
O mal que a alienação dos sentidos produzido pela a disseminação do idealismo – em todas as suas versões, mas sobretudo a mais perniciosa: a vulgarização da epistemologia kantiana – é sensível.
A saúde física e mental das pessoas é seriamente afetada por essa alienação dos sentidos. Nossa relação com a Natureza – com todos os seres ao nosso redor – como já disse, oscila entra a desconfiança e a idolatria. Só nos sentimos à vontade cercados pelos objetos artificiais que a indústria produz.
Enfim, voltemos à Natureza como a fala do Ser. Porque “o Ser se diz de muitos modos”, observou Aristóteles na aurora da filosofia.
O Ser é a voz do Absoluto. O ser é uma linguagem. A Linguagem. A Mathesis Universalis de Descartes pretendia ser sua gramática, presumo.
Para os iluministas de primeira dentição, ergue-se aí um problema: Quem fala, quem se comunica por meio da Natureza?
Qualquer resposta que não seja o Acaso implica a admissão de um Absoluto.
Quando o Iluminismo era ainda apenas anticlerical – uma questão de ordem histórica – a pergunta se colocava de um modo mais discreto. Voltaire não tinha dificuldades de se autoproclamar deísta.
Não demora muito para que esse deísmo genérico implícito no anticlericalismo iluminista degenere em duas vertentes: num gnosticismo mais ou menos explícito, cujo principal expoente é Hegel (e onde eu enquadraria também Kant) ou no ateísmo nu e cru.
Por caminhos diferentes ambos iram conduzir as massas para o niilismo – que Nietzsche percebe com dolorosa clareza.
Ao longo dos próximos dois séculos, essas duas vertentes dominarão o pensamento ocidental em geral – e não apenas a filosofia intramuros.
O contraponto de uma suposta filosofia do senso comum não pode ser uma filosofia contrassensual.
Mas como vimos até aqui, é esse o caso do idealismo kantiano.
Percebe-se que o idealismo não sobrevive sem drama. O drama niilista é sua praia.
Porque sem drama ele, o idealismo não passa de uma redundância.
Cria-se a instância fenomênica apenas para alienar os sentidos.
Pra quê? Por que tratar como fenômenos o que pode ser melhor entendido com representação (sempre) imperfeitas dos seres?
Poder. Vontade de poder.
O resultado está aí: remédios, poluição, alienação, polarização política. Ausência de diálogo em todos os níveis.
É claro que minha revolta contra o idealismo tem de ser visceral.
Porque é maligno.
E quando em penso que há toda uma terapêutica baseada nesses princípios eu vejo o circulo se fechar.
Qualquer terapêutica contemporânea tem de trabalhar para restabelecer os laços sensoriais das pessoas. Estamos mortos, essa é a verdade.
Acreditamos demais no Estado, na Ciência, na Política em coisas maiúsculas e impalpáveis porque perdemos as coisas minúsculas – e reais – que constituem a nossa vida.
É hora de resgatá-las.
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