Eu não cheguei a morrer. Mas a morte estava ali, ao alcance da mão, como para um soldado no front. Cumpriram-se a tempo todos os protocolos, mas há o imponderável, o acaso, a vontade Deus. A calma está na escolha que se faz. Eu há muito escolhera Deus o que me permitia até ser grato por todo o esforço que me era dedicado e rir do que estava acontecendo.
A sala vermelha ficava em frente à morgue, à distância de não mais do que três metros. Não cheguei a visitá-la, mas certamente não será muito maior do que a sala vermelha, a última estação antes da morte.
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Valdecir perdeu o filho há três meses. Quase enlouqueceu, ele me conta, mas sabe que o pior começa agora, o longo processo de aceitar que a ausência é definitiva – e inexplicável. Enquanto espera, ele se distrai salvando vidas. Salvou a minha. Ou sendo mais justo: cumpriu com presteza a parte que lhe coube.
Na impossibilidade de dizer alguma coisa, apenas comento que a meditação poderia quem sabe ajudar, como ao menos a mim estava ajudando a dormir na maca estreita.
“Mindfulness”, escrevo num pedaço precário de papel e lhe dou.
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Ao meu lado dona Ada,de idade indefinida, geme sem parar a intervalos mais ou menos regulares. Ela parece cantar, na verdade, pois há um traço de melodia nos longos e quase monótonos acessos de gemidos que não são de dor ou de tristeza exatamente. Em um desses momentos, dona Edda começou a repetir “Emília, Emília, Emília” e eu, na minha semi-imobilidade na maca ao lado, imaginei que ele sonhava estar num baile de carnaval cantando uma marchinha antiga. Seria lindo e foi, naquele instante, consolador.
A ironia é sempre um bálsamo.
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Saving someone’s life is like falling in love: the best drug in the world. (…) Why deny that, for a moment there, God was you?
Nicolas Cage em Bringing out the Dead, de Martin Scosese, roteiro de Paul Schrader.
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Os paramédicos do SAMU são como monges-guerreiros medievais imbuídos daquele amor prático e firme de que fala padre Pio em sua oração, e metidos numa interminável jam session de procedimentos que se combinam à força de uma lucidez que nasce da intuição e da experiência: cada caso é um caso.
E tudo isso rindo, injetando esperança direto na veia dos sujeitos que embarcam naquelas barcas de Caronte coloridas com medo de não voltar, vendo ou imaginando ver (se de fato tivessem calma para tanto) sua vida girando no ar como uma moeda – não sabendo se ainda ascendente ou já em queda – cara ou coroa, cara ou coroa?
E aqueles rostos luminosos de otimismo talvez sejam a última coisa viva que você verá.
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Porque a primeira coisa que morre é a onipotência. Sim, ela, essa imortal – surpreendida em algum estágio de seu longo percurso. Há onipotências mais maduras e discretas. A minha seguia infantil como sempre fora, até ser capturada de repente ainda em suas fraldas de cupido.
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“Através do pecado, entrou a morte.”
São Paulo aos Romanos 5,12.
Liturgia Diária, terça-feira, 24 de outubro de 2023
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Terá sido Borges quem escreveu em algum lugar que temos a certeza inconsciente de sermos imortais? Será mesmo de Borges essa justificativa da onipotência nunca perdida de todo, esse indício tão flagrante do enfado que é para alguns ter de cuidar de si, essa revolta contra o estoicismo vulgar que esqueceu o próprio nome e origem, moral de escravos perdida em dietas e exercícios de uma consistência tão substancial quanto uma imagem no espelho?
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Mas é verdade também que, vencida e superada essa onipotência infantil e injustificada, de novo o que reencontro (por outros meios) é essa certeza da imortalidade.
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À noite, imóvel na maca estreita, envolto em fraldas que me permitirão urinar sem preocupação, quando finalmente o cansaço chegou para todos: Val, Lu, dona Ida, só então eu quase choro pensando na Tao sozinha pela primeira vez em casa. Só ela agora está só, só ela nesse momento não tem ninguém e não tem como entender porquê.
Só então entendi a morte como infâmia. E não chorei.
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Como é difícil desaprender um condicionamento. Como foi difícil aprender a não urinar nas calças, Como é difícil reaprender a urinar nas calças. Como foi difícil desaprender a usar fraldas. Com o é difícil aprender a usá-las de novo.
No entanto, que conforto é quando a bexiga se esvazia sem molhar a roupa, a cama, a alma – e finalmente durmo.
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Aquele que morre (ou quase) só tem a Deus. Ou não tem nada. É preciso morrer (ou quase) para aprender que quase toda a filosofia contemporânea é uma vasta tolice.
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Dormi – amparado no Vipassana e no Terço, corpo e alma meditando e se descobrindo tão intrinsecamente unidos justo quando tão próximos de se separar.
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A morte é um equivoco, poderia ter dito São Paulo aos Romanos.
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Acordo com dona Edda gemendo sua cantoria. Me consola imaginar que ela não sofra e em sonhos se divirta. Duro foi ouvir o genuíno choro de um bebê internado por pnenumonia enquanto tentavam lhe achar a veia. O choro do bebê, a solidão da Tao – o que se perde com o tempo (e no tempo) não é a inocência mas a autenticidade.
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Cruzo os umbrais da sala vermelha, mas não sigo em direção à morgue: meu destino é outro – o hospital.
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É preciso morrer (ou quase) às vezes. Faz bem à saúde.
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Não é a primeira vez que passeio de ambulância. Nem foi a dor mais intensa que senti. Lembro disso quando os médicos me pedem para inventariar minhas dores e hierarquizá-las: qual a intensidade da dor que o trouxe até aqui? Vergonhosamente baixa. Mas o estrago poderia ter sido grande.
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“Você deu sorte!”, não me canso de ouvir. Sorte, acaso, destino, graça. Tudo em mim escolhe a graça como a explicação mais satisfatória. O que por outro lado só aumenta minha responsabilidade: seria uma ingratidão profunda e imperdoável não me esforçar para viver. Um ingratidão com Deus e o Mundo – literalmente.
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Pois tudo transcorreu como se ensaiado: todos estavam lá, a pessoa certa, no lugar certo e na hora certa para que eu não morresse.
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Não morrer é uma forma discreta de ressuscitar, poderia ter dito Machado. Mas não disse. Morreu antes. Sem atendimento. Não havia SAMU, nem SUS.
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Dona Soraia usa uma toca enfeitada com emblemas do Vasco. Ela faz parte da equipe que em pouco mais de 15 minutos me dará uma nova vida. Uma espécie de fio fino, maleável e inteligente subirá desde o pulso até o mais íntimo de mim e operará micro-alterações fundamentais e refundantes. “O segredo está nos detalhes” nunca foi tao verdadeiro. Sem sangue, sem cortes, sem gritos – o corpo-máquina desejante será restituído ao mundo por tempo indeterminado – graciosa prorrogação. Amém.
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Antes de seguir para a enfermaria, digo a dona Soraia: “Estou torcendo para o Vasco não cair”. “Obrigado, meu filho”.
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A alegria quase histérica de uma enfermaria. A solidariedade fraterna dos que vivem de esperança. A esperança é uma das três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Na enfermaria é possível descobrir que as três são misteriosamente uma só. Como a Trindade.
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De volta a uma obrigatória imobilidade. Vipassana e os Mistérios do Terço de novo. Jesus e Buda. Porque se deixasse só por minha conta seria insuportável.
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Na escuridão de olhos fechados e cobertos por um par de meias, inventario os grandes filmes que têm a ver com hospital: Um Estranho no Ninho, Amargo Regresso, MASH, Nascido em Quatro de Julho (que não vi), Antes de Partir, Bicho de Sete Cabeças…
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A Caverna de Platão é uma sala de cinema.
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Jesus e Buda são homens e sabem quem são. Jesus sabe que é Deus. Buda sabe que não é. Talvez a iluminação seja isso: saber-se.
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À despedida clássica de todo hospital: “Espero que a gente não se veja nunca mais”, acrescento : “Mas se me ver na rua, fale comigo!”
Valdecir, Lu, Princesa Áfia, Saulo, Alessandra, Natália, Ronaldo; dr. Tiago, dr. Erick, dr. João, dr. Gustavo, dr. Rafael; Douglas, seu Manoel – e tantos outros cujos nomes não guardei: todos agora amigos de coração.
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Agora, sim, parafraseando Machado: “Quase morrer é uma forma interina de ressuscitar”.
É bom estar na rua de volta, na vertical.
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Só posso falar pelo que vivi, ver-te vivo naquela cama e saber daquela máquina dos batimentos acelerados e em disparada, só fez saber nem sei como que ter conseguido entrar naquele bendito hospital que estava no lugar certo e na hora certa. Quero você vivo! Lembre-se do enfermeiro Saulo, ele foi maravilhoso, junto com Super Mário e nossa querida Dra Lina! Viva Jajá
Do inestimável circulo interno dos amigos, dos que me amam, ainda não encontrei palavras, a não ser aquelas simples, ditas ali, cara cara, juntos. Vcs me salvaram – ou salvam todos os dias, pq me dão vontade de viver. Obrigado, juju – por tudo.
Jajá, amo você e assim seguiremos até quando quiserem. Você é minha casa e farei tudinho que for possível para estarmos caminhando nessa vida.
Não sei o que te levou ao hospital, mas feliz por te ver de volta – e na vertical. Fica bem 🙏