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A coisa em si kantiana

O que é afinal a “coisa em si” kantiana? E por que ela seria inacessível? Ou mais até: como é possível dizer que algo inacessível existe? Como se vê, a coisa (em si) já começa sob o signo da contradição.

A coisa em si, imagino, seria aquilo que desde Aristóteles chamamos de “essência”, aquilo que resta, digamos assim, depois que abstraímos de um objeto suas qualidades particulares, acidentais, sensíveis.

Assim, por abstração, chegamos à generalidade, à forma que define a matéria, à sombra cujo teatro não sei se ainda hoje encanta os gregos.

Por exemplo, ao observarmos gatos singulares e deles abstraindo suas qualidade particulares – cor, tamanho, peso, etc – chegamos a uma imagem esquemática do que é o gato como espécie, primeiro, e, a seguir, o felino como gênero.

A discussão desde Platão é se essa ideia geral, esse universal, como chamou-se, tem uma existência real; e, se tem, que tipo de existência seria.

Mas a abstração em si é uma ação mental puramente intuitiva, isto é, operamos abstrações desde que começamos a operar com a linguagem, porque abstrair é dar nome às coisas e reconhecer seus exemplares. O mérito infinitamente grande de Aristóteles está em desvendar essa operação em termos lógico-filosóficos.

Mas Aristóteles teve uma outra percepção que, me parece, operou um corte epistemológico insuperável e definitivo, isto é, que levou a filosofia a um outro patamar: a ideia de que as coisas se constituem de ato e potência. Que as coisas são em ato é uma evidência tautológica. Mas – e este “mas” deveria vir em maiúsculas garrafais – esse estar aí, em ato, se dá circunscrito em um campo de possibilidades que lhe é próprio – e a isso chamou de potência, potência de ser.

Podemos chamar à essa potência de ser de essência? Eu imagino que sim, e talvez mais propriamente até do que àquela abstração generalizante que é a forma.

Porque a potência abarca não apenas os aspectos gerais da coisa, sua forma, que lhe define os limites próprios da espécie, mas também seus aspectos singulares – Aristóteles diria “acidentais” – aquilo que a define como aquela criatura específica.

De fato quando nossa atenção se volta para uma coisa em particular o que buscamos perceber são suas potencialidades enquanto ser. Não nos é difícil perceber o que a coisa é – um cavalo, por exemplo – mas a partir de suas qualidades, digamos como Aristóteles, acidentais, tentamos intuir suas potencialidades.

Então não me parece abusivo dizer que a verdadeira essência de uma coisa está na sua potência de ser que, de um modo mais ou menos velado, se mostra já na coisa em ato.

Essa potência, guardados os limites da espécie e da imprevisível finitude a que todas as coisas estão sujeitas, beira o infinito. Um infinito fechado, digamos assim, que inteligência nenhuma é capaz de abarcar plenamente.

* * *

Essa potência revela também outro aspecto que me parece o mais próprio do Ser, aquilo que o define enquanto ser: ela é inteiramente relacional. Isto é, a potência para atualizar-se responde a impulsos internos e externos, num diálogo permanente consigo mesmo e o mundo ao redor.

Como todo ato é atualização de potência, por isso podemos dizer que a coisa, como ato/ potência, é puramente relacional.

O que nos devolve à questão: o que é a coisa em si? Pode ela ser pensada como algo estático ou como algo em si mesma? Não seria isto um falso problema?

***

Enfim, haveria um em si da coisa ou o que há é uma potência em ato que se reatualiza sucessivamente até o fim, isto é, até esgotar-se como ser? E enfatizo “sucessivamente” porque é o que distingue o ser finito de um ser infinito, que seria uma potência em ato simultaneamente.

Assim, tomado como potência em atualização contínua, aquilo que chamamos Ser seria puramente relacional, isto é, não existiria “em si”, mas com outro ou para outro.

Logo o kantismo e tudo que lhe segue – Heidegger inclusive com sua enfadonha ladainha nazista – seriam falsas filosofias fundadas em falsos problemas.

Não falta nesse mundo quem me dê razão.

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