Conversando com um monge amigo para o meu artigo sobre Kant, lá pelas tantas começamos a imaginar o que seria de uma criatura ou de uma espécie se Deus decidisse “esquecê-la” – supondo que todas as criaturas são ideias de Deus e em Deus.
Falávamos da metafisica de Aristóteles, do conceito de matéria e forma, cujo exemplo clássico é a ideia da estátua na mente do escultor antes dele dar forma ao pedaço de mármore que lhe servirá de matéria.
No caso da minha palestra/ artigo, usei o exemplo do clipe, uma invenção recente, que ilustra ainda melhor essa relação entre forma e matéria, essência e existência, espécie e criatura – até chegar em potência e ato, aí já num “salto” de grau de complexidade.
Outro exemplo, inversamente, são esse objetos arqueológicos descobertos em ruínas de antigas civilizações que não sabemos para que serviam. Nesse caso, temos o objeto, mas foi sua ideia que se perdeu.
Na mesma linha de raciocínio, temos as plantas descobertas pelos europeus no Novo Mundo. A mandioca, no Brasil, é um exemplo. Foi preciso entrar em contato com os índios para descobrir que como aquilo se transformava em alimento – ou melhor até: como o alimento provinha daquilo.
À ideia criadora e ao objeto criado, deveríamos acrescentar um terceiro elemento: a ideia coletiva do objeto criado. Essa ideia é, ao mesmo tempo, representação do objeto, mas também potencialmente nela estão contidas as inumeráveis variações da ideia original. Assim, por exemplo, além de todas as variações em torno da ideia do clipe original que foram sendo criadas, disponíveis nas papelarias, há o exemplo radical do monumento ao clipe, erguido na Noruega, que tem para os noruegueses o valor de um símbolo nacional: durante a ocupação nazista da Noruega, os noruegueses usavam um clipe na lapela como signo de sua resistência passiva.
Imaginemos a hipótese cômica de um arqueólogo que daqui a 3.000 anos, depois de descobrir fósseis de clipes por toda a região que um dia fora a Noruega, finalmente se deparasse com a descoberta sensacional do monumento ao clipe. Chegaria, quem sabe a conclusão, que os habitantes da região adoravam uma entidade cuja representação era aquela estranha forma que carregavam consigo, como amuletos, e cujo templo desaparecido gaur dava aquela monumental estátua desse deus desconhecido.
Porque a forma do clipe totemizada num monumento gigantesco já não é mais um clipe propriamente ainda que jamais deixe de sê-lo. Classificá-lo é uma tarefa para os semióticos.
Mas, retomando a conversa com o monge meu amigo, e supondo que a todas as criaturas naturais corresponda uma ideia criadora em Deus, o Criador, por analogia ao esquema da criação das coisas artificiais, imaginamos, eu e o monge, o que sucederia a uma criatura ou espécie se Deus decidisse “apagá-la” de Si.
Nossa conclusão, espetacular e aterradora, é que essa criatura ou espécie deixaria imediatamente de ter existido, isto é, deixaria de existir, tanto no presente e obviamente no futuro, como também no passado. Seria então como se ela jamais tivesse existido. Podemos, acho, imaginar todas as menções à Rosa, por exemplo, simplesmente sumindo de todos os livros, quadros, poemas e lembranças – num piscar de olhos.

Foto de Wanda.
Essa hipótese nos remete à ideia de tempo e de Infinito. Nossa representação do tempo supõe que ele seja uma seta que aponta para o futuro, de tal modo que o passado é uma fatalidade irrevogável. No entanto, visto sob essa nova perspectiva, o passado, assim como o futuro, seriam afetados e modificados pelas ações no presente. Seria então como se o tempo fosse não uma seta, mas uma ponte, um fluxo que corre incessante, para frente e para trás, por assim dizer, modificando-se, refazendo-se, segundo algum principio ordenador que nos transcende.
Essa ideia combina perfeitamente com a definição cartesiana de tempo discreto, mais ou menos resumida na noção de que para Deus criar e conservar são o mesmo. Na vida cotidiana, ela às vezes nos surpreende quando, por exemplo, olhando um fluxo de água que desce ao longo do meio fio de uma ladeira, de repente, ele nos parece estar subindo, e não descendo; para, logo em seguida, parecer estar subindo e descendo – ao mesmo tempo! A mesma impressão também nos pode ser causada pelos jatos verticais de um chafariz.
Essa simultaneidade do tempo seria, por definição, o infinito no que ele se confunde com o eterno. Faz sentido com o princípio fundamental da física cartesiana de que a “quantidade” de extensão e movimento está dada desde sempre e permanece inalterada. Faz sentido também, presumo eu, sem poder afirmá-lo com certeza, com a física relativista “clássica”. E faz sentido igualmente com a teologia cristã de um projeto providencial que alcançaria em algum momento sua completude, culminando com uma espécie de upgrade, em que exatamente o que é para ser – o que é bom – se fixaria no ser, enquanto o que não é para ser – o não-ser ou o mal, no sentido agostiniano – seria relegado ao esquecimento.
“… coisas passadas serão esquecidas, não voltarão mais à memória.” Isaías, 65, 17
“O Senhor pousa seus olhos sobre os justos, e seu ouvido está atento ao seu chamado; mas ele volta a sua face contra os maus, para da terra apagar sua lembrança.” Salmo 33,16-17
E aqui entro no tereno movediço das crenças pessoais. Não creio no Inferno como sofrimento eterno. Creio no esquecimento eterno. Creio que sob do ponto de vista da criatura, infinito ou eterno não é uma medida temporal, mas uma medida de intensidade: creio que a consciência de apagar-se sem ter jamais existido será um instante infinitesimal de dor infinita (mais ou menos como ser tragada por um buraco negro!)
Nessa minha personalíssima “teologia da salvação”, chamemos assim, a medida que o amor avançar em sua incondicionalidade curadora um homem como Hitler irá se apagando até que reste um pequeno Adolf ressentido que se apagará por si só por conta de seu coração duro que não conhece o arrependimento e sente-se justificado no mal que pratica.
Sob um ponto de vista teológico – ou dogmático – e ainda recorrendo às meditações de Descartes, Infinito e Deus são o mesmo. Então, dito de outro modo, Deus pode tudo – inclusive mudar o passado. O tempo só nos parece irreversível porque somos criaturas finitas. Ou melhor, já que estamos no terreno da Teologia: porque somos, nós humanos, criaturas marcadas pelo Pecado Original, ainda que mitigado pela Paixão de Cristo.
Ao contrário de todas as outras criaturas, temos a (falsa) consciência da morte, o que determina todos os nossos atos: vivemos segundo a economia própria de tudo que é finito, isto é, obter o máximo de “rendimento” com o mínimo de esforço, porque nosso único objetivo é durar o máximo possível. Essa trágica condição explicaria o império da lei do mais forte – ou lei do menor esforço, neste contexto – fundamento de todas as relações hierárquicas e abusivas que marcam todas as sociedades humanas até o Advento – e, depois, apesar dele.
Tao, minha gatinha, é. Simplesmente é. Quero dizer com isso que Tao é simplesmente sempre o melhor gato possível, sem desejar ser outra criatura ou de outra espécie. A inveja que nos marca – seguindo aqui a ideia geral do trabalho de René Girard – é própria da natureza humana corrompida pelo Pecado Original – e se expressa nessa insaciável vontade de poder tão visível a olho nu;
Nesse sentido, na Natureza (e aqui como em Descartes e talvez Spinoza) só o Homem existe, mas não é. Só o Homem pode existir sem ser. Tudo mais pode, como Deus, porque criaturas dele, dizer “eu sou o que sou”.
Essa condição “antinatural” é uma contingência, no entanto, uma contingência que, por outro lado, demanda de cada homem um esforço para alinhar-se de volta com o Ser. A chave para deixar de existir para ser é o amor, o amor incondicional, o amor de mãe, pregado por Cristo, capaz de de “nos restituir a Glória” própria de quem se sabe imortal filho de Deus.
Sobre a idéia de Infinito como fundamento da consciência e do próprio pensamento, dê uma lida no meu web-book Meditando com Descartes.
Para uma abordagem mais matemática, digamos assim, da ideia de Infinito, vejam o excelente documentário Uma Viagem ao Infinito, na Netflix.