Por que não nos contentamos com a enormidade que é perceber que tudo é contingente – isto é, livre, tragicamente livre – e que a vida opera segundo padrões que só nos parecem leis universais imutáveis porque somos, em face desse universo, infinitesimalmente finitos?
E como negar que essa hipótese já estava implícita há mais de 2.500 anos quando Aristóteles que tudo simplesmente é, que não há o não-ser, e que as coisas na verdade são potências de ser que se atualizam permanentemente até o fim?
E mais: como esse permanente atualizar-se até o fim incerto implica num diálogo incessante com o meio ao redor daí se pode concluir que isso que chamamos Ser é puramente relacional – “O Ser se diz de muitos modos”, afirma Aristóteles. Logo não há uma coisa em si a se perseguir.
Então se não há Não-ser nem ser-em-Si – o que há então? Há a Vida, fecunda, incessante, interativa, gratuita. E é isso que não se quer que o homem comum perceba: que ele é livre num mundo de abundância.
Quer um exemplo? Enquanto escrevia este texto decidi ouvir uma palestra sobre o livre-arbítrio em Espinoza. Sabia que ele o negava, mas queria ter uma ideia dos argumentos. Espinoza foi mais um cartesiano – na forma apenas, porque essa conclusão é radicalmente oposta à metafísica de Descartes.
O que assisti foi um espetáculo abjeto: um professor de filosofia que se contorcia em gestos e caretas mussolinescas no esforço de demonstrar que não há diferença entre o homem, o porco e o rabanete. E o que é mais lamentável: sob os aplausos de uma plateia em delírio.
O caminho para negar a liberdade é a negação da contingência. Ora, a contingência é autoevidente e os argumentos metafísicos de Descartes para demonstrá-la me parecem suficientes: somos contingentes porque nossa criação e nossa conservação não depende da nossa vontade.
Mas a quase felicidade com que os ouvintes e leitores desse professor acolhem a redução contrassensual deles próprios a porcos e rabanetes apenas demonstra o quão tristemente os homens estão dispostos a ceder ao primeiro tiranete que aparece para se livrar do fardo trágico da liberdade.
“A possibilidade é uma ilusão”, diz a certa altura o tiranete-filosofo.
Acho que essa é a afirmação mais retrograda, mais totalitária, mais anticientífica que eu já ouvi de um intelectual. É a síntese mais exata da pseudofilosofia que nos domina: totalitária, antivida, antirrelacional, hierárquica – e pra usar um termo que ganhou para mim uma conotação radicalmente negativa: algorítmica. Eu sinceramente jamais imaginei que o materialismo fosse tão estúpido em seus fundamentos.
“E de onde vem nosso ilusão de liberdade?” Se antecipa nosso tiranozinho à pergunta óbvia. E ele mesmo responde como bom tiranete que é: porque nós somos incapazes de perceber o complexo conjunto de causas que determinam nossos atos. Mas a pergunta que obviamente se segue ele não se faz: como pode então Espinoza percebê-lo? Porque não se trata de uma verdade autoevidente. É preciso usar as lentes do espinozismo para percebê-lo – aliás, como sucede no kantismo também.
Logo, a razão, a inteligência, o espírito, a mente é primariamente produtora de auto-engano. Isto é, não opera racionalmente. Como então a filosofia é possível? Ou a própria ciência?
Que desastre! E é essa pseudofilosofia – entre outras – que nos é vendida, a preço alto inclusive.
Confiram e tirem suas próprias conclusões.
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