“Estou ciente das grandes reivindicações feitas pelos proponentes deste [o bitcoin] e de produtos similares. Eles estão desintermediando o sistema financeiro. Bancando os sem-banco. Aumentando a liberdade. Mudando o mundo. E quando leio os white papers, é difícil não acreditar. Muitos dos objetivos do ecossistema criptográfico são objetivos que eu apoio. Como ser contra a liberdade e a prosperidade? Mas quando olho para produtos como os que estão em questão na aprovação de hoje, tenho uma pergunta simples: o bitcoin não deveria resolver isso? Se a tecnologia é tão revolucionária, por que tantos dos seus usos parecem girar em torno da recriação do sistema financeiro existente, exceto com menos regulamentação, mais opacidade, menos proteções aos investidores e mais riscos?
Bitcoin é um sistema peer-to-peer. Os investidores individuais nos EUA que desejem investir no produto já podem fazê-lo, seja minerando-o eles próprios ou criando uma carteira e comprando-o de outra pessoa, ações que eles podem fazer no conforto da sua sala de estar. Esse é o objetivo da criação de uma nova moeda digital resistente à censura. Então por que tanta energia está sendo gasta para ligá-lo ao sistema financeiro existente? Receio que as nossas ações hoje não proporcionem aos investidores acesso a novos investimentos, mas sim proporcionem aos próprios investimentos acesso a novos investidores, a fim de sustentarem o seu preço. Embora isto seja do interesse dos patrocinadores dos ETP, bem como dos escritórios de advocacia e prestadores de serviços que serão pagos por eles, meu dever é levar em consideração os investidores, os mercados e o público, cujos interesses gerais, não creio, sejam na verdade, bem servido hoje.”
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Para facilitar a vida do leitor, lancei o trecho final desse comunicado de Caroline Crenshaw, membro do SEC (Securities and
Exchange Commission) no Google Tradutor e dei uma arrumadinha no resultado depois. O texto original está aqui.
Ela, como se vê, discorda da decisão da Comissão de liberar o lançamento de fundos baseados em bitcoin no mercado americano.
Não é minha intenção iniciar uma discussão “teológica” sobre o bitcoin. O tema nunca me interessou a esse ponto. Mas recentemente fiquei impressionado com a cega e inconsistente paixão que envolve o tema, tanto a favor quanto contra. Por isso resolvi dar uma lida sobre o tema e saciar sozinho minhas dúvidas – que não são poucas.
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Disse que o bitcoin nunca me interessou, o que é falso. Lá bem no começo, quando era um tema quente entre geeks, o bitcoin me chamou a atenção principalmente como possibilidade de criação de uma “moeda privada”, talvez o principal objeto de desejo anarco-capitalista. Mas logo o bitcoin sumiu do meu radar, até mesmo pela dificuldade inicial de se entrar nesse ambiente. A coisa só voltou ao meu horizonte uns anos depois quando subitamente reapareceu como um “segredinho” da classe média alta.
Curioso, por um mês ou dois acompanhei o bitcoin, que a essa altura já valia uma grana, até seu valor disparar, não sei se por coincidência ou não, depois do escândalo da JBS no governo Temer. Fiquei com a impressão de que o bitcoin não era mais o que prometera ser: nem moeda alternativa nem poupança segura, mas se tornara um asset especulativo altamente volátil num ambiente onde o único papel que me caberia seria o de otário.
Não quero dizer com isso que não seja possível ao pequeno investidor ganhar dinheiro nesse ambiente. É possível – e conheço quem ganhe. Mas é algo que exige uma dedicação que nunca estive disposto a oferecer.
Só agora voltei a me interessar pelo assunto por conta de toda a gritaria apaixonada a respeito. De cara, fiquei perplexo com o quanto esse mercado cresceu e mudou em tão pouco tempo, isto é, de 2017 pra cá. E sobretudo o quanto “encaretara” de vez: todo aquele papo “ideológico” do tipo “don’t be evil” (quem lembra ainda do slogan do Google nos primórdios?) virou conversa fiada de marketing.
Nesse sentido, o comunicado da analista da SEC me parece altamente esclarecedor porque bate com as minha impressões de leigo: alta concentração e relativo anonimato tornaram o mercado ainda mais exposto à manipulação e à volatilidade do que me parecera há sete anos.
Um artigo da revista online Aeon mostra como as grandes corretoras estão focando no público de baixa renda com a promessa de segurança e ganhos sem fim – as mesmas promessas que criaram a bolha das hipotecas imobiliárias que estourou em 2008 (sobre o tema, a Amazon Prime tem um excelente documentário: A Falha – e as semelhanças entre os dois momentos são aterradoras, ainda mais quando levamos em conta que essa não foi a intenção do documentarista).
Nassim Taleb, um hayekiano feroz, chegou a escrever o seguinte em seu prefácio ao livro de Saifedean Ammous, The Bitcoin Standard: “Somehow, under scale transformation, a miraculous effect emerges: rational markets do not require any individual trader to be rational. In fact they work well under zero intelligence — a zero‐intelligence crowd, under the right design, works better than a Soviet‐style management composed of maximally intelligent humans.”
Fiquei pasmo com a expressão miraculous effect e ainda mais com a possibilidade que ele emeja de um ambiente under zero intelligence – mas isso é puro Hayek, como é fácil conferir – e inferir as consequências – nos documentários do sempre brilhante Adam Curtis. Mas é decepcionante e assustador que alguém com a fama do Taleb creia em milagres produzidos pela burrice.
Mas, enfim, o mesmo Taleb tornou-se logo depois um opositor violento e incansável do bitcoin – talvez porque tenha percebido que sua “pureza irracional” na verdade esconde um ambiente altamente manipulável, propício, como ele não cansa de repetir, à construção de uma bolha, mais uma – consequência do excesso de liquidez produzido para minimizar os efeitos do estouro da bolha das subprimes. Enfim, de bolha em bolha, os tubarões enchem o papo – às custas sempre dos patos e das sardinhas.
Repito, isso não significa que o pequeno investidor nao possa ganhar dinheiro com o bitcoin mesmo agora. mas a prudência é cada vez mais necessária. A regra básica: não creia que é um investimento de longo prazo, do tipo “comprar e esquecer”. Não creia que o bitcoin vá chegar a um milhão de dólares. Não espere multiplicadores de sonho: esse tempo já ficou para trás, basta olhar os gráficos. Daqui pra frente, o acompanhamento tem de ser diário e os movimentos de compra e venda muito bem coordenados: não espere o topo pra sair, nem espere o piso se quiser voltar.
Resumindo: a lei da oferta e da procura não é a lei da gravidade invertida – a ideia de que pela escassez de oferta o bitcoin não cessará de subir me parece uma quimera.
Só pra se ter uma ideia:
“Bitcoin looks disinflationary right now. But this is because those who choose to opt out of putting their money to work effectively reduce the velocity of their money to zero. The delightful thing about bitcoin is that thanks to the openness of the bitcoin ledger we can see quite clearly how much cash never transacts in this way.
For example, according to a report by Crystal Blockchain, as of July 2020, there were over 10m bitcoins (worth $85bn at the time) accumulated in dormant bitcoin addresses with no outgoing transactions at all in 2019. More recent data from bitinfocharts suggests some 17.8m bitcoins out of roughly 18.75m outstanding are currently classified as residing in dormant addresses.”
O tema do artigo do Financial Times é a discussão sobre o caráter desinflácionário do bitcoin, mas repare nos dados: metade do bitcoin disponível está na verdade “adormecido” em carteiras que ninguém sabe a quem pertence.
É natural que um leigo se pergunte: o que pode acontecer quando esses bitcoins acordarem? Há uma extensa discussão técnica sobre o assunto. Se entendi, a hipótese otimista de uma valorização crescente o uuma estabilização pelo topo se funda no fato da oferta limitada desde sempre a 21 milhões de bitcoins mineiráveis – cifra já muito próxima de ser alcançada. Daí a ideia de que, aplicando-se a lei da oferta e da procura, o valor do bitcoin só tenderia a subir. O que o tornaria uma excelente forma de poupança, presumo (ainda que, dada a volatilidade, não serviria como reserva prudente). Acredito que só o futuro dirá.
Mas como moeda cotidiana acho que não há dúvida que o bitcoin já não serve: se por um lado a volatilidade (sempre ela!) não permite estabelecer preços estáveis em bitcoin, por outro, a alta cotação obriga a preços de varejo que seriam enormes frações cheias de zero.
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Mas até aqui ainda estou circulando em torno do problema, isto é, ainda não entrei pra valer no cerne da questão: o que é o bitcoin? Como ele funciona, afinal?
Um bom começo é ir direto à fonte: a FAQ da Fundação Bitcoin.
O que noto de cara é que ainda não há um conjunto de metáforas que permita traduzir as definições e conceitos do bitcoin em linguagem comum. Algo parecido aconteceu com a Física relativista e quântica: foi preciso algumas décadas até que os seus supostos paradoxos pudessem ser traduzidos em palavras e gr[aficos que hoje estão acessíveis em qualquer site de streaming.
Nesse sentido, talvez o pessimismo resulte simplesmente de uma abordagem do bitcoin à luz de conceitos da economia clássica: estaríamos olhando o futuro com as lentes do passado.
Enfim, confesso meu fracasso em explicar de mood simples como funcuona o blockchain e a mineração de bitcoins. Continuarei me esforçando para tentar produzir algo a respeito.
Mas o proximo texto será sobre outro assunt ocontroverso: a relação entre bitcoin e criptomoedas e a far-right internacional.